20/04/09

Memórias



Aqui estou, numa espreguiçadeira de lona sobre as rosas,
a enlanguescer ao crepúsculo, na paz de Setembro, mês entre
todos amado no seu vagar de bocejo, a promessa do Outono
no rés da terra a chamar-me. Pode ser-se feliz sem pensar,
ser feliz com o cheiro de um silêncio na paz de Setembro,
no seu vagar de bocejo.
Sou eu a espreitar ausências, porque a idade tudo confunde,
desde os cheiros aos sons, memórias defuntas, onde as
emoções não me afligem: - Afinal sempre obedeci por cobardia.
As minha preocupações são rasteiras, vou perdendo as coisas
antes de me perder a mim mesma e, não há em mim memória,
em que lugar me perdi, porque o passado continua a existir ao
mesmo tempo que nós.
Reparem com me suspendo, hesito, começo a trotar e venho,
porque, confesso: Há criaturas eternas.
Aqui e agora, de soslaios ressentidos, vou jogando consoantes
contra o papel.
Vejo o Tejo num postigo com os montes de Almada e por ali
vou eu, descendo as escadas daquele segundo andar,
avaliando os degraus com as biqueiras, riscos nas paredes
e o corrimão descascado.
Os saltos batem na calçada numa sinfonia apressada.
Afasto-me daquele mundo, no fim de contas não esférico,
comprido, nem no pólo se acaba, depois do pólo, mais
mundo, trazendo-me até ali, áquela noite.
- Porque teimas em olhar?
Um rosto atrás do estore, para sempre perdido, talvez aquele
que desejei a vida inteira, sem jamais nos cruzarmos,
que desde o ínicio me pertence e, a quem pertenço,
desconhecendo que lhe pertencia, pela qual morrerei
soluçando de amor, sem nunca nos havermos tocado.
Dobrando a esquina, correndo atrás da manhã, os
candeeiros da rua apagados á pedrada,
apenas as lãmpadas da agência bancária, deixavam ver
de viés o meu rosto reflectido na montra.
Olhando mais uma vez aquele estore, nem um lencito de
adeus, é o grito que nos obriga a suspender o aceno.
Aí estávamos nós, defensores da verdade e da coerência,
sem a miséria de um encorajamento, uma palavra, a
caminharmos numa agitação sem destino, no sentido
do nada, gordurosos de sono e cansaço ou tão sómente
por sentirmos a vida vazia.
Por ali fica a nossa imagem mais algum tempo, na vizinhança
do rio, tralha dos cais, uma espécie de halo
sem origem, cada vez mais afastados.
O céu toca na muralha destingindo nas ondas como o rosto
no estore, pelo qual morreria, sem nos havermos tocado.
Termine o olhar frente a um estore descido e, talvez o rosto
volte, pertence-me, é meu, tantos anos á espera dele.
Despeço-me da vizinhaça do rio, edifícios outrora ricos e
agora desbotados, relevos sobre as portas oxidados,
edifícios de reformados, pobres a fingirem-se partidários
dos que mandam e no entanto conspirando, minando a
opinião de outros, pelo progresso que lhes alterou
o quotidiano.
- Que noite aquela, não fosse a última por mil anos vivesse,
jamais a esqueceria.
Azar o meu ter chegado tão tarde...

Cada porta que se fecha, fecha sobre nós algo que nos mantém
mais distantes do Mundo.

5 comentários:

  1. Intenso e profundamente belo...

    Excelente post, assim como todo o blog..
    Parabens!

    Kris

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  2. Anabela:

    Faz como eu! Passei a vida a bater a portas fechadas que ninguém abriu.
    Decidi então ser feliz frente a portas que se não abrem. E sou feliz sozinho comigo mesmo e a minha criatividade.

    Sejemos autodiadtas. Nunca contemos com os outros, esses que, à sua maneira, contam connosco!

    Beijo - Rogério

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  3. Por cada porta que se fecha outra se abre sem dúvida, o problema reside em encontrá-la.

    bjs - João

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